8.1.06

razão e fé

estive a ler o último post do Mitch quando me perpassou mentalmente uma ideia que me faz uma comichão intelectual e não me deixa ficar impávido perante aquilo que dali li e extraí. Trata-se de algo que li de Pessoa, como não podia deixar de ser, no seu Livro do Desassossego (melhor dizendo, foi Bernardo Soares quem o escreveu, o seu semi-heterónimo).


176.

A ESTALAGEM DA RAZÃO

A meio caminho entre a fé e a crítica está a estalagem da razão. A razão é a fé no que se pode compreender sem fé; mas é uma fé ainda, porque compreender envolve pressupor que há qualquer coisa compreensível.


Na verdade, simplesmente não podemos ter a certeza de nada. A única coisa que podemos é crer.

7.1.06

que posso eu dizer que já não foi dito?

será que me repito muitas vezes?
quantas vezes um homem na Austrália já teve a mesma ideia que eu e a pôs para o papel?
quantas vezes pessoas por todo o mundo se espantaram com as mesmas coisas, acharam um brilho especial na cor da lua, no voo duma borboleta, na casca rugosa de uma árvore...
será que nos repetimos muitas vezes?

uma ideia fantástica é conceber que, neste preciso momento, está alguém no pólo Norte a ler um livro do Kant e a perguntar-se a si próprio se as estruturas do pensamento organizam a realidade com base na experiência, ou a ver pela primeira vez um desenho da estátua de David e espantar-se com a sua beleza clássica, ou a ouvir o requiem de Mozart e a sentir a sua alma a elevar-se nas alturas com a insustentável leveza do ser, ou a falar com outro alguém e a fazê-lo pensar de tal maneira que o outro fica inspirado a fazer coisas belas?

já pensaram nisso?

quantos de nós no mundo nos perguntamos e questionamos sobre as mesmas coisas, quantos de nós temos as mesmas dúvidas, quantos de nós gostariam de estar em toda a parte ao mesmo tempo, quantos de nós vivem insatisfeitos consigo próprios, quantos de nós exercem a sua capacidade pensante diariamente ao ponto de duvidar da sua própria sabedoria ou até da sua própria dúvida...

imaginem...
imaginem que eu, que estou a sentir-me inspirado, escrevo este texto aqui e agora, e que depois resolvo metê-lo na internet. Imaginem que, devido a essa inspiração, que é a minha musa, escrevo algo belo, e escrevo algo com um brilho especial que pode ser detectado por aqueles cujos olhos estão treinados e sensibilizados para esse brilho... imaginem que eu escrevo e ponho quanto sou neste texto, nesta composição, neste conjunto de signos e de letras comuns a tantos de nós e que tão poucas vezes damos valor... imaginem que escrevo algo assim, e que depois o envio directamente de mim para todo o mundo, para a grande rede que é a internet, e que o ponho à disposição do olhar de quem quer que seja, independemente da sua idade, altura, maioridade, cultura, aspecto, personalidade, feitio, ira, amizade, cor, coração... imaginem que consigo esse feito extraordinário e que esse texto, essa ideia, essa mensagem, é lido por uma pessoa, uma única pessoa que, num dia triste e cinzento, farta da vida e si própria, farta dos outros e daquilo que tem, descontente com aquilo que é e triste e de cabeça caída, mas que ainda tem força para ir à internet, e eis que dá de caras com esse texto, essa ideia, essa mensagem...

imaginem que ela dá de caras com ele, e não o ignora. Que não o despreza, que não o pré-conceptualiza, que não o cataloga, que não o rotula, que não o subentende ou sobrevaloriza... que apenas lê pelo puro prazer que é ler, que é compreender o significado de uma mensagem inscrita numa língua tão rica que conhece, pelo prazer que é aprender e conhecer...

e imaginem que ela, ao ler algo assim, ao ler tudo aquilo que foi inscrito, teclado a dedo de ferro e aço, transformado por circuito electrónicos e impulsos eléctricos, coordenado por mãos humanas e pensado por uma mente, imaginem que ela de facto se inspira por causa desse algo que encontra, que a sua alma se eleva a uma nova vibração, que de repente o dia parece mais alegre, e a chuva mais brilhante, que a borboleta tem um novo brilho, que o voo é mais gracioso, que o computador deixa de ser máquina para ser meio, que o texto deixa de ser texto para se transformar em mensagem, que aquele que escreve deixa de ser alguém anónimo e passa a estar perto...

imaginem que isso acontece numa fracção de segundo, que o salto para o desconhecido que se dá permite a essa pessoa elevar a sua alma, que de repente as coisas fazem mais sentido porque a mente se dá ao trabalho de descansar e de deixar-se fluir ao sabor de ideias, conceitos, mensagens, pensamentos...

imaginem só...

que satisfação não será para a pessoa que escreveu esse texto?
e que satisfação maior que o prazer e a beleza que resulta de ter escrito algo belo e de essa coisa, pelos caminhos da vida, ter provocado em uma só pessoa o despertar de algo grande, de algo belo, de algo que conduz ao bom, de um êxtase sublime que se sublima docemente e se perpetua ao longo da sua disposição...

e agora imaginem que essa mensagem chega a outra pessoa...
e outra...
e outra...
e outra...